Reflexão de Gustavo Ioschpe na Revista
Veja - 11/05/2014 - São Paulo, SP.
Texto objetivo e contundente !
Normalmente escrevo
esta coluna pensando nos leitores que nada têm a ver com o setor
educacional. Faço isso, em primeiro lugar, porque creio que a
educação brasileira só vai avançar (e com ela o Brasil) quando
houver demanda pública por melhorias. E, segundo, porque nos últimos
anos tenho chegado à conclusão de que falar com o professor médio
brasileiro, na esperança de trazer algum conhecimento que o leve a
melhorar seu desempenho, é mais inútil do que o proverbial pente
para careca. Não deve haver, nos 510 milhões de quilômetros
quadrados deste nosso planeta solitário, um grupo mais obstinado em
ignorar a realidade que o dos professores brasileiros. O discurso é
sempre o mesmo: o professor é um herói, um sacerdote abnegado da
construção de um mundo melhor, mal pago, desvalorizado, abandonado
pela sociedade e pelos governantes, que faz o melhor possível com o
pouco que recebe. Hoje faço minha última tentativa de falar aos
nossos mestres. E, dado o grau de autoengano em que vivem, eu o farei
sem firulas.
Caros professores:
vocês se meteram em uma enrascada. Há décadas, as lideranças de
vocês vêm construindo um discurso de vitimização. A imagem que
vocês vendem não é a de profissionais competentes e comprometidos,
mas a de coitadinhos, estropiados e maltratados. E vocês venceram: a
população brasileira está do seu lado, comprou essa imagem (nada
seduz mais a alma brasileira do que um coitado, afinal). Quando vocês
fazem greve — mesmo a mais disparatada e interminável —, os pais
de alunos não ficam bravos por pagar impostos a profissionais que
deixam seus filhos na mão; pelo contrário, apoiam a causa de vocês.
É uma vitória quase inacreditável. Mas prestem atenção: essa é
uma vitória de Pirro. Porque nos últimos anos essa imagem de
desalento fez com que aumentassem muito os recursos que vão para
vocês, sem a exigência de alguma contrapartida da sua parte.
Recentemente destinamos os royalties do pré-sal a vocês, e, em
breve, quando o Plano Nacional de Educação que transita no
Congresso for aprovado, seremos o único país do mundo, exceto Cuba,
em que se gastam 10% do PIB em educação (aos filocubanos, saibam
que o salário de um professor lá é de aproximadamente 28 dólares
por mês. Isso mesmo, 28 dólares. Os 10% cubanos se devem à falta
de PIB, não a um volume de investimento significativo).
Quando um custo é
pequeno, ninguém se importa muito com o resultado. Quando as coisas
vão bem, ninguém fica muito preocupado em cortar despesas. E,
quando a área é de pouca importância, a pressão pelo desempenho é
pequena. No passado recente, tudo isso era verdade sobre a educação
brasileira. Éramos um país agrícola em um mundo industrial; a
qualificação de nossa gente não era um elemento indispensável e o
país crescia bem. Mas isso mudou. O tempo das vacas gordas já era,
e a educação passou a ser prioridade inadiável na era do
conhecimento. Nesse cenário, a chance de que se continue atirando
dinheiro no sistema educacional sem haver nenhuma melhora, a longo
prazo, é zero.
Vocês foram
gananciosos demais. Os 10% do PIB e os royalties do pré-sal serão a
danação de vocês. Porque, quando essa enxurrada de dinheiro
começar a entrar e nossa educação continuar um desastre, até os
pais de alunos de escola pública vão entender o que hoje só os
estudiosos da área sabem: que não há relação entre valor
investido em educação — entre eles o salário de professor — e
o aprendizado dos alunos. Aí esses pais, e a mídia, vão finalmente
querer entrar nas escolas para entender como é possível investirmos
tanto e colhermos tão pouco. Vão descobrir que a escola brasileira
é uma farsa, um depósito de crianças. Verão a quantidade abismal
de professores que faltam ao trabalho, que não prescrevem nem
corrigem dever de casa, que passam o tempo de aula lendo jornal ou em
rede social ou, no melhor dos casos, enchendo o quadro-negro de
conteúdo para aluno copiar, como se isso fosse aula. E então vocês
serão cobrados. Muito cobrados. Mas, como terão passado décadas
apenas pedindo mais, em vez de buscar qualificação, não
conseguirão entregar.
Quando isso
acontecer, não esperem a ajuda dos atuais defensores de vocês, como
políticos de esquerda, dirigentes de ONGs da área e alguns
“intelectuais”. Sei que em declarações públicas esse pessoal
faz juras de amor a vocês. Mas, quando as luzes se apagam e as
câmeras param de filmar, eles dizem cobras e lagartos.
Existem muitas
coisas que vocês precisarão fazer, na prática, para melhorar a
qualidade do ensino, e sobre elas já discorri em alguns livros e
artigos aqui. Antes delas, seria bom começarem a remover as
barreiras mentais que geram um discurso ilógico e atravancam o
progresso. Primeira: se vocês são vítimas que não têm culpa de
nada, também não poderão ser os protagonistas que terão
responsabilidade pelo sucesso. Se são objetos do processo quando ele
dá errado, não poderão ser sujeitos quando ele começar a dar
certo. Se vocês querem ser importantes na vitória, precisam
assimilar o seu papel na derrota.
Segunda: vocês não
podem menosprezar a ciência e os achados da literatura empírica
sempre que, como na questão dos salários, eles forem contrários
aos interesses de vocês. Ou vocês acreditam em ciência, ou não
acreditam. E, se não acreditam — se o que vale é experiência
pessoal ou achismo —, então vocês são absolutamente
dispensáveis, e podemos escolher na rua qualquer pessoa dotada de
bom-senso para cuidar da nossa educação. Vocês são os guardiães
e retransmissores do c acumulado ao longo da história da humanidade.
Menosprezar ou relativizar esse conhecimento é cavar a própria
cova.
Terceira: parem de
vedar a participação de terceiros no debate educacional. É
inconsistente com o que vocês mesmos dizem: que o problema da
educação brasileira é de falta de envolvimento da sociedade.
Quando a sociedade quer participar, vocês precisam encorajá-la, não
dizer que só quem vive a rotina de “cuspe e giz” é que pode
opinar. Até porque, se cada área só puder ser discutida por quem a
pratica, vocês terão de deixar a determinação de salários e
investimentos nas mãos de economistas. Acho que não gostarão do
resultado...
Quarta: abandonem
essa obsessão por salários. Ela está impedindo que vocês vejam
todos os outros problemas — seus e dos outros. O discurso sobre
salários é inconsistente. Se o aumento de salário melhorar o
desempenho, significa que ou vocês estavam desmotivados (o que não
casa com o discurso de abnegados tirando leite de pedra) ou que é
preciso atrair pessoas de outro perfil para a profissão (o que
equivale a dizer que vocês são inúteis irrecuperáveis).
O respeito da
sociedade não virá quando vocês tiverem um contracheque mais
gordo. Virá se vocês começarem a notar suas próprias carências e
lutarem para saná-las, dando ao país o que esperamos de vocês:
educação de qualidade para nossos filhos.
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