Por Marília Scriboni
Em meio ao processo pela guarda dos dois filhos, a auditora Giovanna Kathleen Benedetti, de 40 anos, foi surpreendida: sem sequer ter passado por uma consulta médica, foi diagnosticada como portadora do transtorno afetivo bipolar. A autora do laudo, a psicopedagoga Marisa Potiens Zílio, a pedido do ex-marido de Giovanna, fraudou o documento a fim de influenciar a decisão da Justiça, como atestam os autos do processo. Agora, Marisa terá de indenizar a vítima em R$ 30 mil.
Mãe de dois meninos, um deles com inteligência acima da média, Giovanna costumava levar semanalmente o mais novo ao consultório da psicopedagoga. Avó e tia paternas da criança eram pacientes assíduas. A proximidade entre profissional e família fez com o que o pai, Lisandro Webber, encomendasse o laudo, que mais tarde seria juntado aos autos do processo de guarda.
As circunstâncias do laudo em questão — que, ao longo da ação por danos morais, Marisa sempre chamou de parecer — é carregada de incoerências. A primeira delas diz respeito à própria prerrogativa da atividade do psicopedagogo. De acordo com a Associação Brasileira de Psicopedagoga, a classe não tem a capacidade de atestar a existência de doenças. Tal competência fica reservada a médicos e psicólogos. Não foi o que Marisa fez: diagnosticou o transtorno afetivo bipolar maníaco sem sintomas psicóticos, como elenca o sistema Cid (Classificação Internacional de Doenças).
Esse tipo de transtorno é caracterizado por mais de um episódio no qual tanto humor quanto nível de atividade da pessoa que sofre a doença ficam profundamente perturbados. Em certos momentos, a situação atinge a hipomania ou mania — marcadas pelo aumento de energia e de atividade — e, em outras, a depressão, com rebaixamento do humor e redução da energia de atividade.
Em depoimento prestado durante a primeira instância, Maria Célia Rosseto, que trabalhou com Marisa, disse que mesmo que o profissional da área da psicopedagogia possa perceber uma doença mental, orientando e solicitando confirmações acerca do diagnóstico, não pode atestá-la. O impedimento é previsto, inclusive, pelo Código de Ética da classe.
Além disso, outro fator chama atenção: as idas semanais de Giovanna ao consultório de Marisa se restringiam ao atendimento do filho menor. Ela conta nunca ter passado por uma avaliação da psicopedagoga. Ou seja, Marisa diagnosticou a doença a distância.
Marisa, por sua vez, conta que o documento juntado ao processo não seria um laudo, mas sim um parecer técnico. Nele, explica, ela teria atestado observações detectadas durante os encontros profissionais mantidos com a família. Ela diz também não saber da intenção do pai do menino de anexar o documento aos autos e, que, antes de chegar ao veredicto, discutiu o caso com um psiquiatra e um psicólogo.
A juíza de Direito Luciana Bertoni Tieppo, da 4ª Vara Cível da Comarca de Passo Fundo (RS), anotou que "é evidente que a ré agiu ilicitamente ao atestar que a autora apresentava transtorno afetivo bipolar, porquanto não habilitada para tanto e, principalmente, diante do fato de não ser a autora sua paciente, não podendo fazer diagnóstico de terceiros a pedido de outras pessoas, sem qualquer avaliação do pretenso paciente".
Giovanna entrou com o pedido de indenização por danos morais logo depois que a guarda dos filhos foi confirmada. Com uma indenização fixada em R$ 60 mil pelo juízo de primeiro grau, a psicopedagoga resolveu apelar. O caso foi parar na 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde a desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira reduziu o valor para R$ 30 mil. Também em segunda instância ficou entendido que "o psicopedagogo não possui atribuição legal para diagnosticar doenças e recomendar terapias", como escreveu a desembargadora.
Outra irregularidade apontada na atuação profissional da psicopedagoga é o fato de ela não ter mantido o sigilo sobre o falso laudo. Tatiana Bertolo Macedo, segunda psicóloga do menino, revelou que teve acesso aos laudos. De acordo com ela, Marisa, assim que soube que ela havia sido arrolada como testemunha no caso, mostrou-lhe o documento. Daí decorreria uma segunda infração ao Código de Ética da profissão. Segundo o artigo 8º, "o psicopedagogo está obrigado a guardar sigilo sobre fatos de que tenha conhecimento em decorrência do exercício de sua atividade".
Também em segunda instância ficou configurado o dolo da psicopedagoga. "Tenho como grave", escreveu a desembargadora Iris, "o fato de a requerida [Marisa] imputar à autora doença mental inexistente. Agrava-se à situação com a inclusão do parecer em ação judicial na qual se discutia a guarda de filhos, sofrendo a requerente sérios prejuízos de ordem moral".
A juíza de primeira instância resume o quadro: "Ficou claramente demonstrado nos autos o vínculo da demandada com a família do ex-marido da autora, inclusive, afirmando a mesma que tinha notícias da criança pela sua avó e sua tia, ambas suas pacientes, motivo que pode ter sido o fator determinante de sua conduta, o que a torna mais reprovável ainda". No documento forjado, a psicopedagoga Marisa chegou a recomendar que as crianças ficassem sob a guarda do pai.
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